:: Entrevista ::
Roberto Piva


Pergunta: Por que você pensou esse título para seu novo livro, "Estranhos sinais de Saturno"?
Roberto Piva: Que é uma síntese de cosmos com melancolia, e Saturno é sempre um espanto, não é? É sempre uma surpresa.

Pergunta: Num poema,você fala que você não é um poeta da cidade, mas na cidade. Mas podemos pensar que você também não é um poeta da natureza, ou na natureza.
A poesia vem de onde, então, Piva?

RP: Daquela vertente cósmica, onde nós pegamos toda a inspiração e transformamos na matéria prima da poesia.

Pergunta: "Estranhos sinais de Saturno" está repleto de referências ao império romano. O que o império romano representa hoje para a gente, para as nossas práticas? Por que ele está nos eu horizonte?
RP: O império romano está em uma relação integral com o sagrado. As orgias eram dedicadas a Baco, a Dionísio, a Cibele, à deusa-mãe, à Flora.Você vê que o próprio poeta Marcial dedica o livro dele aos adeptos da deusa Flora. Então, eu tenho muita influência da poesia dos poetas romanos, Virgílio, Horácio, Catulo, Marcial.

Pergunta: Marcial foi muito importante para você, no sentido de Marcial ser cortante? A poesia de Marcial é absolutamente cortante.
RP: Principalmente quando ele fala de garotos. Ele era financiado por um gladiador, que mandava comida para ele. E ele pedia sempre para o gladiador: “Por favor, não esqueça do vinho Falerno, você está me matando de sede”. Da outra vez ele pediu: “Por favor, traga o vinho Falerno e deixe o garoto também porque é uma beleza esse garoto que você manda.” O gladiador parece que parou de mandar depois que ele cantou o garoto do gladiador. E um gladiador era uma barra pesada; seria como cantar um garoto de uma mulher de um boxeur nos tempos atuais.

Pergunta: A cidade em que vivemos é uma experiência muito terrível, muito dura, mas todas as sexualidades libertárias estão ligadas ao ambiente da cidade.
RP: É curioso isso porque pagão vem de “pagana”, que é acampamento de camponeses. E foi onde o cristianismo teve mais dificuldade de combater os deuses e as orgias pagãs. Isso eu acho que é uma idéia falsa porque as pessoas de origem rural são muito livres. A periferia de São Paulo nos anos 50e 60 eram esses garotos e garotas com rostos bem rurais, com sardas e com aquela pele dourada dos subúrbios. Eram muito livres.

Pergunta: Desse ponto de vista, o campo é muito mais livre que a cidade.
RP: Muito mais. Você vê que a iniciação dos garotos rurais e dá com os animais.

Pergunta: Não só em Estranhos sinais de Saturno, mas em Ciclones também e mesmo antes, a sua poesia está cheia de gaviões. Há gaviões por todos os lados e agora, inclusive, você colocou no final de seu livro uma frase importante de Oswald: “Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho”. Fale um pouco disso. Por que o gavião? Qual o significado dele para você?
RP: É um de meus animais xamânicos, um de meus totens. Aquilo que o Murilo Mendes dizia sobre o tamanduá, toda vez que ele encontrava com o Breton, o Breton perguntava sobre o grande “tamanoar”. E também o Camus perguntava, descendo no aeroporto do Rio de Janeiro, a primeira coisa que ele quis ver foi ir para o zoológico com Murilo Mendes para ver o bicho-preguiça. E o Oswald de Andrade, se eu não me engano, cita duas ou três vezes, ou três ou quatro vezes o gavião de penacho. Inclusive nesse manifesto importantíssimo que é o “Poesia Pau-Brasil”. Então era o animal-totem dele, assim como jabuti era o do Mário de Andrade.

Pergunta: Quais os poderes do gavião?
RP: O gavião é a visão penetrante, é a perseguição extra-sensorial, toda visão de rapina em relação ao herbívoro.

Pergunta: Há uma hierarquia xamânica? O gavião ocupa uma posição nessa hierarquia?
RP: Não. Existem pessoas que têm a aranha como animal xamânico, inseto xamânico, tem andorinha, tem peixes. Mas isso não tem uma hierarquia, assim como no candomblé não existe um orixá que se sobrepõe ao outro, todos se equivalem dentro de uma perspectiva maior que é a totalidade dos arquétipos humanos.

Pergunta: Você poderia comentar o poema a seguir, que está em "Estranhos sinais de Saturno" e chama-se “Emoção em pedaços”?

Bomba atarefada
Bomba desastre
anjo de vôo de abutre
garoto-bomba mini-Tarzã
bomba solar do Barão Julius Evola
bomba na bunda de Hitler
sonhos ecos em Tóquio
agonia de uma princesa deplorável

Pergunta: Chama a atenção nesse poema o barão Julius Evola ...

RP: Era um erudito e que escreveu um livro sobre a alquimia, sobre a sabedoria hermética. Eu gosto do livro dele chamado Revolta contra o mundo moderno , que é uma recuperação das vertentes arcaicas da cultura.

Pergunta: Você leu Strindberg?
RP: Eu li há muitos anos o Inferno . Mas muitos anos mesmo, em 1961, uma coisa assim.

Pergunta: No seu trabalho, parece que cada vez mais você articula muitas coisas: alquimia, xamanismo e poesia visionária como, por exemplo, a de Dino Campana. Como essas coisas se articulam?
RP: Acho que foi o Walter Benjamin que disse que a poesia é uma historiografia inconsciente. Está tudo interligado, os arquétipos que são as imagens primordiais da humanidade. Então, eles estão todos interligados e fazem parte de uma sabedoria cósmica, uma sabedoria xamânica. O xamã foi o primeiro poeta, o primeiro legislador, o primeiro organizador de tribos, e grupos humanos, etc...

Pergunta: Quando você chegou ao xamanismo? Há quantos anos?
RP: Nossa, eu tinha doze anos, mas eu não sabia que aquilo chamava xamanismo, para mim ele estava fazendo bruxaria. Era um empregado na fazenda do meu pai, descendente de índio e de negro, que me iniciou no xamanismo e na piromancia. Ele acendia fogueira, toda noite a gente ia perto da casa dele. E ele perguntava à gente o que a gente via que o fogo formava. Então, tinham coisas espantosas, formava figuras espantosas, era uma fazenda num lugar muito estranho, num lugar muito alto.

Pergunta: Há exercícios fundamentais para se ingressar no xamanismo, para se tornar um xamã? Eles podem ser falados?
RP: Podem, tem todo tipo. Há xamanismo e xamanismo. Xamanismo é uma religião de poesia, não de teologia. Tem vários, há um grupo famoso, eles são do grupo Pagéia, se autodenominam Xamãs Urbanos, que é um grupo de junguianos que estudam e praticam xamanismo.

Pergunta: Você já esteve perto deles?
RP: Eu freqüentei muito lá, eu fui o criador da idéia da Pagéia, que é o instituto de pesquisas xamânicas.

Pergunta: O que falta fazer, Piva? O que falta experimentar? Nada?
RP: Agora acho que é a morte, né? (risos) (cantando:) “A morte é a única diferença, eu tenho trinta cidades dentro de mim, trinta cidades, trinta montanhas, a morte é a única diferença, eu tenho trinta cidades dentro de mim, trinta cidades, trinta montanhas. ”

Pergunta: O que é isso?
RP: Isso é "Os tigres da noite", do José Vicente, que morreu recentemente. Ele fez uma ópera-rock e é uma das músicas da ópera-rock.

Pergunta: Você estás se preparando então para a morte?
RP: E para a vida também. A morte é uma festa,não é?, eu quero participar dela.

Pergunta: Há outra ida depois?
RP: Não sei.Como diria Garcia Lorca,“sou apenas um pulso ferido que sonda as coisas do outro lado”.

Pergunta: Você gostaria?
RP: As pessoas que fazem a experiência de quase morte não gostariam de voltar, não. A Frida Kahlo, por exemplo, falou: “Vou e não volto mais ”. Deixou um cartão postal: “Vou e não quero voltar nunca mais”. Não é o meu caso porque eu tive muitas alegrias, não é?

Pergunta: Há proibições no xamanismo?
RP: Não sei quais, depende do xamanismo. Eu nunca vi proibição alguma, de espécie alguma.

Pergunta: Por que o xamanismo vem mais do componente indígena?
RP: É uma mistura, vem dos cultos de Mitra da Roma antiga, vem dos indígenas, vem dos peles vermelhas americanos, de uma parte do candomblé.... Mircea Eliade vê manifestações idênticas nos mais distantes lugares do planeta, onde ele assinala imagens do inconsciente coletivo.

Pergunta: O xamanismo te faz acessar a poesia, mas também te faz viver melhor?
RP: Não sei, xamanismo para mim é uma forma de crescimento espiritual.

Pergunta: Se pudesse resumir o seu trabalho, com um norte, um sentido, como resumiria tudo o que você fez ao longo de mais de quarenta anos de criação?
RP: Eu resumiria usando uma expressão do Henri Michaux: Eu escrevo para minha saúde”(risos)

Pergunta: Para você se sentir bem?
RP: Para me sentir bem.

Pergunta: Você tem escrito alguma coisa?
RP: Eu quero ler uma coisa que eu escrevi, a última coisa, que já é do outro livro novo. É um livro que vai chamar Poemas Mitraicos e a conexão Exu.

“Gato de vidro ”:

o adolescente cantor de rock
pé de sapo
desmunheca desde cedo
com seu sex appeal de menino pelicano
sua voz de torneira
pompa de flor noturna
descendo as escadas
com sua minissaia psicodélica
exibindo lindas coxas de cetim marmóreo
faz milagres e cura
ensaboando-se no ventre
com esperma de marinheiro
fazendo-se flagelar
por uma menina deusa
sem tricotar a alma alheia
sem nariz de platina
com canivete suíço enterrado na coxa
sempre doido
sempre tesudo

Pergunta: Parece haver uma política em que a sucessão das palavras produza uma explosão na cabeça do leitor. Um exemplo: um poema seu cuja primeira frase parece uma loucura. O poema começa assim: “caralho pop Shiva”. Essa sucessão de palavras é uma bomba.
É isso?

RP: Shivaístas são adoradores do caralho. Têm uma influência do induísmo, jogam leite nos falos, assim como exu é o falo.

Pergunta: Para ler sua poesia é preciso parar e estudar. Não é uma poesia fácil, ao contrário, ela é extremamente elaborada, há muitas citações eruditas no meio dotexto “popular ”. Uma mistura completa de registros, os mais chãos e os mais sublimes. O leitor tem que estudar muito, ele tem que parar em cada poema, prestar atenção detalhadamente. Mas parece que em você é uma tempestade cerebral.
RP: É um grande brainstorm.

Pergunta: Mas há unidades....
RP: Unidades, e há ligações profundas entre os textos.

Pergunta: Última Pergunta: você espera alguma coisa dos seus leitores?
RP: Ah, sim. Eu tenho muitas satisfações. Num dos cursos que eu dei em Santo André, numa dessas regiões do ABC, as pessoas vinham chorando, liam minha poesia chorando e vinham beijar a minha mão como se eu fosse um novo sacerdote de Mitra introduzindo aquela religião dos soldados romanos que construíam templos de Mitra por toda
a fronteira do império.

Fonte: Globo Livros
 
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